Meu pai foi um ávido leitor. Acho que talvez seja a pessoa mais bibliófila que já conheci. Hoje posso afirmar que estou competindo com ele por este adjetivo. Sou grato por ter herdado esse gene, do prazer por buscar nos livros uma fonte de inspiração e conhecimento. Digo que foi um ávido leitor porque há dois anos diagnosticou-se Alzheimer nele, logo, entendo que ficou difícil para ele manter esse hábito. Desde então tenho encarado uma jornada maravilhosa pela sua biblioteca. Sempre que posso passo algumas horas por lá, selecionando livros que pacientemente vou migrando para a minha coleção. Tem sido fantástica essa experiência, não só pelo prazer da leitura de novas velhas obras, mas principalmente por poder correr os olhos sobre as linhas que meu pai percorreu em momentos diferentes de sua vida. Ver suas anotações, marcações e adicionar as minhas.
Em um desses furtos à biblioteca de meu pai, peguei um livro publicado inicialmente em 1941 (quando ele tinha apenas 1 ano de vida), chamado “Visconde de Mauá – Autobiografia: Exposição aos Credores e ao Público, seguida de O Meio Circulante no Brasil”. Excepcionalmente Prefaciado e anotado por Claudio Ganns. A edição que tenho em mãos – 3ª – foi publicada em 1998, lida pelo meu pai em 2004 e por mim em 2024.
A bibliografia sobre Irineu Evangelista de Sousa – Barão de Mauá e posteriormente, Visconde de Mauá – e é vasta. Essa não é a primeira obra que leio sobre ele. Já tinha lido dentre outras a que provavelmente é a mais moderna e popular, publicada pelo best-seller Jorge Caldeira, “Mauá: o empresário do Império” discorre sobre toda a sua vida com uma narrativa encantadora. Como excelente contador de histórias que é, Caldeira nos presenteia com um roteiro de cinema sobre este que foi de fato um dos fundadores do empresariado brasileiro. Este é um livro que inclusive costumo presentear alguns amigos empresários, para que sirva de inspiração sobre como é possível impactar positivamente uma nação sendo empresário. Mas na obra do Caldeira, não tinha percebido o quanto o Barão de Mauá havia errado em sua carreira.
Já mais para o final de sua vida profissional, enquanto se preparava para partir mais uma vez para a Inglaterra, Mauá publicou a “Exposição aos Credores”. No momento em que ele estava sendo publicamente atacado por diversas fontes como o grande empresário mau do país, a figura personificada do explorador inescrupuloso, ele se enfurna na sua casa na Fazenda Atalaia em Sapopemba (SP), lista todas as empresas que sua memória permite e começa a relatar, empresa por empresa, o que deu certo e o que deu errado, ressaltando de forma muito sucinta os motivos de sucesso ou fracasso.
Em 32 anos de trabalho depois que saiu de seu emprego na empresa Comercial Importadora / Exportadora Inglesa, Mauá fez questão de citar e detalhar nesta sua obra 24 negócios, mas ainda assim, conforme o próprio autor (Mauá) e Claudio Ganns, essa não é uma lista completa. Alguns negócios como por exemplo a construção do Canal do Mangue ficaram de fora.
Não quero me debruçar sobre os feitos do empresário, sua vida pessoal, ou sua mentalidade empreendedora – existem inúmeros ensaios fantásticos sobre isso – mas desejo chamar atenção para a quantidade de negócios que deram prejuízo por este que é talvez o maior empresário do país.
O homem que fundou o Banco do Brasil – sim, “O” Bando do Brasil, o maior banco público do país – teve prejuízo em 17 dos 24 negócios listados por ele nesta autobiografia de seus negócios. Destes 17 que deram prejuízo, 3 foram por ele considerados literalmente um “desastre financeiro”.
Dos 7 negócios que não ficaram no negativo, em 3 ele conseguiu recuperar o investimento realizado e 4 destes 7 deram lucro.
Foram eles[1]:

Mauá já era um homem rico na sua primeira fase de vida profissional. Graças à sua perspicácia com números, contabilidade, controle financeiro e poder de negociação, carregou nas costas a casa de comercio exterior Inglesa no Brasil (Carruthers & Co.) em sua fase final de negócios, enquanto seu proprietário já havia partido de volta para sua terra natal, tamanha era sua confiança no trabalho do Irineu Evangelista, que delegou à ele a liquidação de seus negócios no Brasil. Isso fez dele um homem rico ainda com 33 anos. Pelas suas próprias palavras, ele já poderia se aposentar nesta fase de vida e ainda seria considerado rico pelo resto da vida.
Sob minha ótica, portanto, o que motivou este homem a partir para sua segunda jornada profissional não foi a vontade de fazer mais dinheiro. Ele mesmo menciona que enquanto estava para se lançar sobre o empreendedorismo, um dilema entre o “egoísmo (…) a as ideias generosas que em grau elevado o arrastavam a outros destinos” debatiam internamente. Uma ocorrência ilustrativa pode ser citada antes de seu primeiro empreendimento, a Siderúrgica Ponta da Areia.
Ainda exercendo sua função de comerciante pela Carruthers & Co, enquanto numa visita à Inglaterra em 1840, ele conheceu um estabelecimento de fundição em Bristol e pôde tangibilizar o que ele já interpretava à época como uma Industria de Base, “(…) necessidade primária para ver aparecer a indústria propriamente dita no meu país.” (…) “o Brasil precisava de alguma indústria dessas que podem medrar sem grandes auxílios para que o mecanismo de sua vida econômica possa funcionar com vantagens; e a indústria que manipula o ferro, sendo a mãe das outras, me parecia o alicerce dessa aspiração. Causou-me forte impressão (…) aí gerou-se em meu espírito a ideia de fundar em meu país um estabelecimento idêntico”
Ou seja, é possível perceber que a vocação para iniciar sua segunda jornada profissional, a de empreendedor e não mais funcionário, foi sua visão de futuro sobre o desenvolvimento econômico de um país.
A fundição foi de fato o primeiro negócio criado por ele em sua carreira empreendedora, teve grande sucesso e serviu de base para diversos outros negócios de Mauá, desde a construção de navios, tubulações para companhia de gás, e vários outros, mas veio a falir depois de mudanças na legislação de importação de maquinários que vieram a concorrer com os bens produzidos na Ponta de Areia, e a inadimplência em contratos com o governo e um grande incêndio que também contribuiu para a concordata do negócio.
Desde esse primeiro empreendimento, percebe-se duas características basilares em todos os negócios do Barão de Mauá: ele sempre buscou sócios (muitos, quantos necessários) sem se preocupar com sua participação majoritária ou não do negócio; e sempre trabalhou muito alavancado.
Para alguém que já era rico, e ponderava exatamente sobre a possibilidade de ser “egoísta” e não mais empreender, ele resolve assumir riscos e mais riscos, e alavancar esses riscos com sócios e financiamentos. Em tempos de documentário sobre outro grande brasileiro esportista, ele me lembra o Senna na sua famosa entrevista com Jack Stewart “if you no longer go for a gap, you´re no longer a racing driver”. Pelo visto, para Mauá, se você não assume mais riscos, você não é mais um empresário. E me parece que ele levou isso ao pé da letra.
Considerando que Mauá sempre tentou empreender com recursos de terceiros, seja sócios ou empréstimos, entendo que ele foi visionário também em relação à teoria econômica de Schumpeter, que só veio a nascer quando aquele já havia morrido. Shcumpeter dizia que o empresário não é quem investe recursos (toma riscos), mas quem cria algo novo em cima das “invenções” já existentes. Uma vez que Mauá sempre esteve alavancado e com muitos sócios em todos os seus negócios e ao mesmo tempo sempre focou em destruição criativa de negócios, que é a essência de Schumpeter.
Já que Mauá nos mostra sobre a destruição criativa antes mesmo de Schumpeter nascer, por que não falar de Inovação Aberta?! O termo que hoje está tão na moda e é adotado como umas das melhores práticas de promover o desenvolvimento econômico para novos negócios, já era adotado pelo Barão de Mauá. Em 1865 ele promoveu um concurso com premiação em dinheiro para que descobrisse um processo de congelamento da carne que permitisse a exportação de carne congelada do Uruguai. Ora se isso não é justamente a nossa “Inovação Aberta” que hoje temos no mercado! Lembrando que nesta época, o banco de Mauá era o principal financiador da indústria uruguaia.
Apesar de chamar atenção para a quantidade de negócios que deram errado na carreira empreendedora de Mauá, é importante dizer que por obvio os poucos negócios que deram certo, devem ter gerado muito recurso positivo pois com essa construção de valor, Mauá conseguiu liquidar todos os seus negócios de maneira razoavelmente digna, ao que me parece. Isso também me antecipa o que hoje vemos como prática comum dos Venture Capitalists. Todos esses fundos de investimentos em Startups que vemos proliferados hoje em dia aplicam exatamente essa teoria, de que precisamos investir em muitos negócios, errar rápido – e de preferência, pouco – para saber também rápido qual negócio merece alocação de maiores recursos e estes vão gerar caixa suficiente para cobrir o prejuízo de todos os outros.
A grande “coincidência” é que os números que vemos neste mercado de Venture Capital é exatamente este que chegou Mauá. Precisamos investir em pelo menos 24 startups para que pelo menos uma cubra com folga todos os outros investimentos que deram errado.
O que me faz pensar no papel dos meios de crédito privado no Brasil atual. Não vejo muitas ou relevantes iniciativas de bancos privados financiando Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para startups por aqui. Somente linhas de crédito para grandes corporações conseguem esta linha de financiamento. E percebam que neste caso, do Banco Mauá, o incentivo ao desenvolvimento tecnológico foi feito diretamente pela instituição de crédito, que certamente se beneficiaria sobre o avanço financeiro que seus clientes, produtores rurais, alcançariam com a nova tecnologia de congelamento.
Uma curiosidade e prova visionária de Mauá é que o concurso e financiamento para P&D promovido por ele aconteceu em 1865. Em 1878 a Swift, interessada em comprar carne da região central dos EUA e levar para a costa Oeste financiou a invenção e patente do primeiro vagão de trem refrigerado.
Jorge Caldeira deu ao seu livro o título “Mauá: O Empresário do Império”. Hoje, após a leitura de sua autobiografia dos negócios, acho que uma melhor descrição seria Mauá: O empresário da Liquidação. Pois o que mais ele fez foi liquidar negócios. Por vezes como no caso de seus dois bancos, (Banco do Brasil e Banco Mauá), ambos tiveram que ser entregues ao governo. E em outras realizando a dissolução completa do negócio mesmo, como foi por exemplo sua primeira experiencia profissional na casa de comércio exterior Carruthers & Co.
É portanto, possível dizer que o empresário mais visionário que o Brasil já teve, viveu para criar, crescer e dissolver negócios, por toda a sua vida profissional. E concluiu sua vida sem nenhum negócio, gerindo sobras de recursos que deram à ele dignidade com uma casa própria, imagino que algum recurso fora do país (Inglaterra) e um enorme legado e inspiração para diversos outros empresários posteriores.
Se Mauá que é Mauá errou mais que acertou, quem somos nós para não abraçar o erro nos negócios? E fico feliz por perceber que isso tem sido cada vez mais assumido no meio empresarial. Hoje, a teoria de erre muito, de maneira controlada e rápido toma uma parcela relevante no desenvolvimento de novos negócios. Por isso a importância de construir um framework de teste de hipóteses e isso fazer parte do dia a dia do empresário atual, para que possamos mapear exatamente todas as possibilidades de testes que gostaríamos de fazer, avaliar qual a priorização de testes e ter controle sobre o que está sendo testado e seus resultados, almejando por fim identificar o mais rápido possível o que deu certo e errado, parar de repetir o erro e investir mais nos acertos.
Na minha experiencia em startups de I.A., erramos entre 90% e 85% das vezes. E nos acertos, o incremento na melhor das hipóteses é de até 3% no faturamento, logo, precisamos ter uma máquina de testes de hipóteses bem azeitada para conseguir ter algum resultado exponencial no desenvolvimento de novos negócios.
Por que um homem com mais fracasso que sucesso, é considerado o maior empresário do país? Para mim fica evidente que é pela grandiosidade da visão de futuro que seus negócios vislumbravam. Com sucesso ou não.
A Estrada de Ferro Paraná – Mato Grosso, abriu o interior do Brasil para ser explorado comercialmente. Um modelo logístico multimodal marítimo – fluvial – ferroviário – estrada de rodagem único foi explorado por ele neste negócio.
O interior do Amazonas somente começou a ser explorado comercialmente depois que ele inaugurou essa linha de navegação.
A iluminação na capital do país a gás encanado, substituindo a iluminação de candeeiros a óleo animal revolucionou a vida urbana no país e isso foi criado por ele.
A primeira estrada de ferro do país foi construída e explorada por ele, apesar de não ter sido o primeiro empreendimento neste meio, outros vieram antes, mas não conseguiram executar a obra e promover a exploração comercial. Neste episódio, ele trouxe o Imperador para lançar a pedra fundamental do negócio, entregou na mão deste uma pá de prata e o fez cavar o primeiro monte de terra, proferiu um discurso assim enaltecendo o trabalho. Outra curiosidade é que na viagem inaugural, ele explanou brevemente ao Imperador seus mais ousados sonhos de conectar o país inteiro com uma malha ferroviária, promovendo assim diversos outros negócios. Parece-me que neste momento o imperador começou a entender a grandiosidade do empresário e desde então buscou limitar sua atuação para não ofuscar o Império.
Até mesmo em telecomunicações foi inovador. Fez o lançamento do primeiro cabo de telégrafo submarino conectando a Europa ao Brasil, com recursos próprios.
A livre concorrência por crédito para o comércio foi uma bandeira hasteada por ele em todos os seus bancos, enquanto o Governo desejava – e lutou – para que o crédito fosse concentrado em um só banco, e assim o fez quando tomou para si o Banco do Brasil e depois permitiu a falência de diversos outros bancos para novamente incorporar ao banco do governo.
Na agricultura, ele importou profissionais “assalariados” especialistas para trabalharem por exemplo a implementação das melhores técnicas da lavoura açucareira à época. Importou implementos agrícolas inexistentes por essas bandas até então. Ou seja, além de novamente incentivar a implantação da tecnologia de ponta, com técnicas avançadas e implementos tecnológicos, ainda mostrou como se deve abolir a escravidão com exemplo de contratação profissional. Não deixou de apontar a ineficiência do governo para a resolução do problema de falta de mão de obra sustentável para a economia na abolição da escravidão.
Ao final do livro são dedicadas 11 páginas à genealogia do Mauá, quando para minha surpresa, descobri que o autor do prefácio e anotações, Claudio Ganns, advogado e jornalista, é descendente em 3ª geração do empresário.
Bem, na verdade acredito que todos os que ousam empreender no Brasil devem sim ao Barão de Mauá uma referência. Hoje para mim seu legado não se restringe aos negócios, mas à modalidade visionária de inovação. Acho que ele errou em diversos pontos, por ter se aproximado tanto do governo talvez, por arriscar em excesso, quem sabe. Mas fica claro que na vida, por maior que sejamos, vamos errar mais que acertar – assim como meu pai. E tudo bem, desde que o resultado dos poucos acertos seja maior que os erros.
[1] Listei os empreendimentos na mesma ordem que o Mauá citou em sua publicação original “Exposição aos credores”. Exceto pela menção derradeira ao Banco Mauá e aos Empreendimentos Agrícolas, a lista está em ordem cronológica.

