Na Câmara dos Deputados, a discussão sobre o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, que regulamenta o uso e o desenvolvimento da inteligência artificial (IA) no Brasil, vem trazendo à tona um tema que vai além das questões jurídicas: a soberania dos dados e a infraestrutura tecnológica nacional. O tema foi pauta de audiência pública realizada recentemente e mostrou que, mais do que classificar sistemas de IA por níveis de risco, o país precisa definir se terá autonomia sobre seus próprios modelos, dados e equipamentos.
Para o diretor da WideLabs, André Beck, empresa responsável pelo primeiro modelo de linguagem de grande porte (LLM) totalmente treinado no Brasil, essa é uma questão estratégica. “Não adianta falar de inteligência artificial sem olhar para onde os dados estão sendo processados, quem controla as máquinas e se essa informação permanece em território nacional. Isso é soberania”.
A WideLabs tem participado ativamente das discussões em Brasília, a convite da presidente da Comissão Especial sobre Inteligência Artificial (IA) da Câmara dos Deputados, a deputada Luísa Canziani (PSD/PR). Também mantém diálogo com o relator da proposta, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP/PB). Para Beck, a presença das empresas nesse debate é essencial. “É muito desafiador esperar que parlamentares que não são especialistas regulamentem sozinhos um tema tão complexo. A contribuição técnica do setor é indispensável”.
No debate do PL 2.338/2023, Beck aponta uma fragilidade central: a ausência de distinção entre os diferentes níveis de aplicação da IA. “O texto trata apenas de ‘sistemas de IA’, mas não diferencia o que é um modelo fundacional, o motor da IA ou uma aplicação final. Essa separação é fundamental para qualquer regulamentação efetiva”, avalia.
Concorrência global e geopolítica da IA
O diretor da WideLabs chama atenção para o cenário internacional, onde a concorrência é desleal. Nos Estados Unidos, por exemplo, as big techs têm atuado para flexibilizar ainda mais as regras de uso de IA, enquanto na Europa o AI Act adota parâmetros mais restritivos. Na Ásia, a China consolidou sua liderança regional. “A América Latina é a última fronteira populacional relevante para IA. Se o Brasil não se posicionar rapidamente, perderemos espaço nesse tabuleiro”, alerta Beck. Para ele, a mão de obra brasileira é competitiva, mas o país ainda depende de LLMs americanos. “Com sua estrutura, território, mão de obra e energia, o Brasil tem potencial para ser um grande player de IA e precisa de um arcabouço legislativo que promova essa independência”.

O executivo entende que, além da regulação, a soberania em IA depende de bases concretas de infraestrutura. Neste sentido, o Brasil reúne condições únicas para disputar espaço nesse setor: energia em abundância, áreas para instalação de data centers e mão de obra qualificada. “Um data center pode não empregar muitas pessoas na operação, mas gera obras, tributos e, principalmente, garante que dados estratégicos fiquem no país. É um ativo fundamental”, defende Beck.
Oportunidade estratégica
A WideLabs tem buscado estruturar seu ecossistema por meio de parcerias com NVIDIA, Oracle e Ascenty, garantindo treinamento de modelos em GPUs localizadas no Brasil e com uso de energia renovável. O mais recente passo foi o lançamento da plataforma Amazônia 360, uma solução PaaS que amplia o acesso aos modelos da empresa com cobrança baseada em créditos, e não por número de usuários.
Para o executivo, a inteligência artificial marca a quarta grande revolução da humanidade, depois da agrícola, da industrial e da digital. E, diferente das anteriores, seu ritmo é exponencialmente acelerado. “O que acontece em um mês parece ter levado um ano. É uma corrida em que o Brasil tem tudo para ser protagonista, mas precisa agir com urgência”.
A próxima audiência pública da Comissão Especial sobre Inteligência Artificial (IA) da Câmara dos Deputados será realizada nesta terça-feira, 2, para discutir questões relacionadas a direitos autorais. A audiência será realizada a partir das 13h30, em plenário a ser definido.

Da saúde ao primeiro LLM brasileiro
Fundada em 2020 por um físico e um médico, a WideLabs iniciou sua trajetória com foco em soluções de IA para a área da saúde. Um dos projetos mais conhecidos foi a criação de uma IA para pacientes com Alzheimer, proposta por Nelson Leoni (hoje CEO da empresa), que na época trabalhava na Unicef. O objetivo era desenvolver uma IA que não ‘alucinasse’, capaz de gravar e sintetizar as melhores histórias do paciente e familiares na voz do próprio paciente, organizando-as cronologicamente para criar uma biografia consultável. Essa IA visava retardar o avanço da doença através da terapia de reminiscência.
O projeto foi premiado com um leão de bronze no Festival de Cannes em 2023 na área de inovação. Após esse reconhecimento, a NVIDIA convidou a WideLabs para participar do programa NVIDIA Inception, um programa de aceleração de startups de IA que oferece apoio e créditos de máquinas.
A virada estratégica veio em 2024, quando a WideLabs decidiu pausar o desenvolvimento de soluções verticais para se dedicar integralmente à criação de modelos fundacionais de linguagem. Em julho daquele ano, durante a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, foi lançado o Amazônia IA, primeiro LLM treinado 100% em solo brasileiro, com datasets em português e referências culturais locais. “Não existe hoje outro modelo que tenha sido treinado integralmente no Brasil, com dados daqui, por brasileiros e em máquinas localizadas no país. Isso nos dá uma independência tecnológica fundamental”, destacou Beck.
A WideLabs também consolidou sua relevância internacional pela via da inovação. Em 2024 e 2025, acumulou mais de 18 prêmios em festivais com projetos como o Baby Minder, que monitora bebês para prever distúrbios neurológicos, e o PainVisible, capaz de identificar dores em pacientes não verbais por câmeras térmicas, exemplificam como a empresa combina ciência, criatividade e impacto social. “Esses prêmios funcionam como a Fórmula 1 da IA. Eles nos puxam para a fronteira da inovação e depois aplicamos esse conhecimento em soluções reais para o mercado”, ressalta Beck.
Atualmente, a WideLabs possui uma família de 17 modelos em funcionamento, incluindo o Amazônia IA (o modelo grande), Harpia (modelo multimodal), Golia (multimodal pequeno com análise de sentimentos), e Guara (dedicado à transcrição de áudio com sensibilidade a sotaques e gírias regionais). A empresa ajusta e aprimora esses modelos para demandas específicas do mercado, o que é especialmente relevante para o setor público e setores regulados como, por exemplo, a Dataprev e o Ministério Público do Rio Grande do Sul, que têm preocupação com dados sensíveis e a soberania da informação.