Quando falamos em inovação no Brasil, os holofotes quase sempre se voltam para startups, inteligência artificial, blockchain e outros termos sofisticados que parecem prometer a salvação de todos os nossos problemas. É como se inovação fosse sinônimo de alta tecnologia, importada de fora, com certificação internacional e linguagem de difícil acesso. Mas, e se eu dissesse que algumas das soluções mais transformadoras que já conheci não vieram de laboratórios nem de centros de pesquisa de ponta, mas sim de cozinhas comunitárias, galpões de cooperativas e reuniões embaixo de árvores?
Essa é a essência da tecnologia social. Ela nasce onde há problema real, escuta genuína e disposição para construir coletivamente. É uma resposta criativa a desafios concretos, elaborada por quem vive o problema na pele. Não chega com manuais prontos, mas com mãos dispostas, escuta atenta e vontade de mudar a realidade. Por isso, ouso dizer: tecnologia social é gente — não máquina.
A inteligência das comunidades
Tecnologias sociais não são soluções improvisadas — são práticas sistematizadas que integram conhecimento técnico e popular, com foco na transformação social. O Brasil, aliás, é referência nesse campo. Desde os anos 1990, iniciativas como as cisternas do semiárido, os bancos comunitários, os quintais produtivos, as cooperativas de catadores e os sistemas agroflorestais têm mostrado que inovação pode (e deve) vir da base.
Essa inteligência das comunidades não aparece em capas de revistas de inovação, mas alimenta famílias, gera renda, cuida do meio ambiente e promove cidadania. Infelizmente, seguimos presos a uma lógica colonial, que valoriza mais o que vem de fora do que o que brota do território.
Recomeçar é uma forma de inovar
Falo com propriedade porque tenho acompanhado de perto o nascimento e o fortalecimento de tecnologias sociais no cotidiano. A Campanha Recomeçar, por exemplo, foi criada após as enchentes de maio de 2024, para apoiar catadores de materiais recicláveis em Canoas (RS). Não foi uma iniciativa pensada em um coworking ou aceleradora. Ela surgiu do diálogo com as cooperativas, da escuta atenta das suas dores, e do reconhecimento da urgência de garantir dignidade a quem sempre esteve nas margens do sistema.
Recomeçar foi — e continua sendo — um processo de construção coletiva. Desde a arrecadação de recursos até a entrega de itens básicos, passando pela articulação com outras redes, tudo foi baseado na confiança, na transparência e na participação direta dos envolvidos. E, mais do que isso, a campanha vem evoluindo para algo maior: um projeto de transformação dos resíduos em novos produtos, com geração de renda, autonomia e valorização do trabalho das mulheres cooperadas.
Isso é tecnologia social: resolver um problema de forma estruturada, com soluções enraizadas no território, que permanecem mesmo depois que os holofotes se apagam.
Mas por que ainda é tão invisível?
Apesar de sua potência, a tecnologia social continua sendo tratada como “irmã menor” da inovação tecnológica tradicional. Os editais de fomento raramente contemplam esse tipo de iniciativa. O olhar ainda é enviesado: busca-se o “inédito mundial”, o “pitch perfeito”, o “modelo escalável”, quando muitas vezes o mais inovador é aquilo que funciona localmente, com recursos limitados, e transforma vidas de verdade.
O Brasil precisa rever com urgência seus critérios de inovação. Por que valorizamos tanto uma solução digital para gestão de resíduos e ignoramos uma rede de cooperativas que já coleta, separa e reaproveita toneladas de material reciclável todos os dias? Por que reconhecemos uma fintech que facilita doações, mas não fortalecemos os movimentos que distribuem cestas básicas, medicamentos e acolhimento emocional em territórios vulneráveis?
Essa miopia nos custa caro — não só financeiramente, mas social e moralmente. Enquanto continuarmos ignorando as tecnologias sociais, deixaremos de apoiar soluções que realmente enfrentam desigualdades estruturais.
Inovar com alma, com gente, com território
É preciso recuperar o sentido original da inovação: encontrar novas formas de fazer, com criatividade e propósito. E isso só é possível com escuta, confiança e coautoria com quem vive os problemas todos os dias. Inovação de verdade é aquela que amplia direitos, devolve dignidade, gera pertencimento e transforma a realidade de forma sustentável.
Não estou dizendo que devemos abandonar as tecnologias de ponta. Muito pelo contrário. Elas podem — e devem — dialogar com as tecnologias sociais. Mas esse diálogo precisa ser horizontal, respeitoso e consciente das assimetrias. Não se trata de sobrepor uma à outra, mas de reconhecer que há muitas formas de produzir inovação, e que a mais urgente talvez seja aquela que começa com uma pergunta simples: “Como posso te ajudar, do teu jeito, com o que tu já tens?”
Porque, no fim das contas, inovação sem gente é só um enfeite bonito. Mas quando colocamos as pessoas no centro, a tecnologia ganha alma — e é aí que ela vira transformação de verdade.
Referências
ASA BRASIL. Programa Cisternas. [S.l.], 2023. Disponível em: https://www.asabrasil.org.br.
BARKI, Edgard; LOWNDES, Viviane. O campo da inovação social no Brasil: panorama e desafios. São Paulo: FGV EAESP, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br.
FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL. O que é tecnologia social. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.fbb.org.br/tecnologia-social.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Panorama dos resíduos sólidos no Brasil: diagnóstico dos catadores e das cooperativas de material reciclável. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.ipea.gov.br.
MOVIMENTO NACIONAL ODS RS. Campanha Recomeçar: reconstruindo vidas com dignidade e tecnologia social. Porto Alegre, 2024. Disponível em: https://odsrs.org.br.
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Brasília: PNUD Brasil, 2020. Disponível em: https://www.br.undp.org.