O debate público em torno da Inteligência Artificial (IA) tornou-se onipresente, prometendo transformações radicais em diversas esferas da vida humana. No entanto, a maneira como essa discussão se desenrola e como a tecnologia é absorvida pela sociedade revelam uma preocupante superficialidade. Essa dinâmica ecoa, de forma notável, o conceito de “homem-massa” de José Ortega y Gasset, um pensador que já em sua época alertava para os perigos da massificação e da ausência de pensamento crítico. Longe de um aprofundamento genuíno e responsável, o que se observa é um espetáculo polarizado entre o deslumbramento acrítico e o pânico infundado, ambos desprovidos de uma compreensão autêntica da complexidade da IA. O ano de 2024, em particular, serviu como um catalisador, expondo as fragilidades desse debate e os inúmeros tropeços decorrentes de uma abordagem simplista.
Ortega, em sua análise do “homem-massa”, descrevia um indivíduo que emerge em sociedades massificadas, caracterizado pela perda da individualidade e pela adoção acrítica de padrões e comportamentos coletivos. Este homem, influenciado por processos como a industrialização e a urbanização, busca a satisfação imediata de seus desejos, sem considerar as consequências de suas ações. Ele se dilui na massa, perdendo sua singularidade e aceitando passivamente as ideias prevalecentes, sem exercer um pensamento crítico. No contexto da Inteligência Artificial, essa descrição se encaixa perfeitamente. A facilidade de acesso a ferramentas de IA, a promessa sedutora de automação e a onipresença de algoritmos são aceitas sem a devida ponderação ou prudência. O ano de 2024 foi particularmente rico em exemplos que ilustram essa aceitação acrítica. O fenômeno do “AI slop” – a proliferação de conteúdo de baixa qualidade gerado por IA que inundou a internet – é a materialização mais evidente dessa falta de discernimento. Esse conteúdo não apenas degrada a qualidade da informação disponível, mas também compromete a base de dados para o treinamento de futuros modelos de IA, criando um ciclo vicioso de mediocridade. Logo, o desprovimento da “sensibilidade para os grandes deveres históricos e éticos” que Ortega tanto lamentava acaba tornando-se inevitável.
Um aspecto ainda mais preocupante é o surgimento de uma nova casta de “especialistas em IA”. Ortega, em sua obra seminal “A Rebelião das Massas”, já alertava para a “barbárie do especialismo”, onde o “homem de ciência” poderia, paradoxalmente, encarnar o protótipo do homem-massa se sua expertise se restringisse a um campo específico, ignorando o restante do conhecimento humano. No cenário atual da IA, um campo que evolui a uma velocidade vertiginosa, testemunhamos o florescimento de “gurus” que, munidos de um conhecimento superficial, conseguem impressionar e influenciar significativamente na tomada de decisões cruciais de organizações. Eles se assemelham ao personagem “homem que sabia javanês” de Lima Barreto: uma aparência de saber que, na realidade, carece de substância e profundidade. Essa superficialidade, infelizmente, não se limita aos autoproclamados especialistas, mas se reflete diretamente no caos gerado na aplicação prática da IA, sendo muitas vezes ignorado suas implicações éticas e sociais, ou suas limitações acerca do próprio propósito de existência.
E em sua ânsia e imediatismo, por adotar a tecnologia, frequentemente o fazem sem uma compreensão aprofundada de suas nuances, dos vieses inerentes aos algoritmos ou da complexidade de sua implementação com olhar apenas para inovação que muitas vezes não se sustenta. Os casos de chatbots empresariais são exemplos contundentes dessa adoção irresponsável. O chatbot da Air Canada, que forneceu informações falsas sobre políticas de reembolso, ou o da DPD, que chegou a proferir xingamentos a clientes, demonstram os riscos de implementar a IA sem um controle de qualidade rigoroso e uma supervisão humana adequada. Além disso, o fracasso de gadgets de IA, como o Ai Pin e o Rabbit R1, que prometiam resolver problemas que, na verdade, não existiam, evidencia a desconexão entre a inovação tecnológica e as necessidades reais dos usuários. Esses dispositivos, que não encontraram um propósito claro no mercado, são um sintoma da busca por soluções tecnológicas por si só, sem uma demanda genuína.
Em suma, como a sociedade contemporânea tem abraçado a Inteligência Artificial é um reflexo fiel do “homem-massa” de Ortega: uma mentalidade marcada pela superficialidade, pela ausência de crítica e por uma aceitação acrítica das novidades tecnológicas. Essa abordagem, como demonstrado pelos exemplos de 2024, conduz invariavelmente a fracassos, à disseminação de desinformação e a um uso irresponsável da tecnologia. Para que a IA possa, de fato, servir ao progresso humano e contribuir para um futuro mais promissor, é imperativo que superemos essa mentalidade. Precisamos urgentemente de um debate mais profundo, crítico e responsável, que transcenda o mero deslumbramento tecnológico ou o pânico infundado. É chegado o momento de exigir um debate profundo das limitações intrínsecas da própria tecnologia. Somente assim poderemos evitar o “triunfo do bárbaro, do néscio sem limites” no campo da tecnologia mais transformadora de nosso tempo. A busca por inovação não pode, em hipótese alguma, prescindir da responsabilidade e do respeito aos valores humanos fundamentais e éticos.
Referências Bibliográficas
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