Quando a inovação não chega na ponta: reflexões de dentro da indústria

Lily Marchisio - Especialista em gestão de projetos com foco em inovação, impacto social e empreendedorismo.

Dizem que toda jornada empreendedora começa com uma inquietação. E, às vezes, termina com um suspiro profundo, uma bagagem cheia de aprendizados e uma pergunta que ecoa: por que a inovação ainda demora tanto a chegar onde mais importa?

Recentemente, me deparei com o relato corajoso de um amigo, Ricardo Motta, encerrando as atividades de sua startup. Uma indtech ousada, baseada em inteligência artificial, criada para reduzir a exposição humana ao risco. Um verdadeiro superpoder para o chão de fábrica. Ele acreditava. Eu também acreditaria. Porque quando se vive dentro das grandes estruturas industriais, a promessa de tecnologia que protege, otimiza e transforma é uma luz no fim de um túnel abafado e quente — às vezes, literalmente quente.

As palavras dele me tocaram lá no fundo, porque me vi ali, entre os parágrafos e entrelinhas. Venho do mundo da manufatura, da indústria pesada. Vivi o contraste, muitas vezes doloroso, entre o discurso vibrante da inovação e a realidade crua das operações.

Vi empresas com painéis coloridos, dashboards impressionantes e salas batizadas de “war rooms” onde se discutiam estratégias transformadoras. Mas quando você sai dessas salas e circula na planta, conversa com operadores, observa a rotina de quem realmente “põe a mão na massa”, o cenário é outro. Vi planilhas que não se conversavam. Vi atas de reuniões em arquivos Word sendo salvas em pastas sem qualquer governança. Vi máquinas operadas manualmente enquanto se discutia automação de última geração. Vi iniciativas de transformação tecnológica que não passavam da camada gerencial — como se fossem feitas apenas para o PowerPoint.

Uma vez, durante uma auditoria em uma grande corporação, me apresentaram com orgulho um projeto de Indústria 4.0 em andamento. Como apaixonada pela quarta revolução industrial, meus olhos brilharam. Mas bastou circular pela operação para encontrar fornalhas em pleno uso, com operadores cavando resíduos incandescentes com pedaços de ferro, vestidos com roupas espessas que tentavam, sem muito sucesso, amenizar o calor. Era uma cena do passado coexistindo com promessas futuristas no mesmo ambiente.

Quando questionei, de volta à sala de reuniões, quando o projeto 4.0 chegaria àquela ponta, a resposta foi: “Estamos priorizando o administrativo por enquanto”. Mas como assim? Por que a inovação começa onde ela é menos necessária? Por que a revolução tecnológica, que tanto promete aliviar o peso do trabalho humano, ainda ignora quem mais carrega esse peso?

O relato do Motta me lembrou o quanto ainda estamos presos às lógicas da velha economia. Aquelas em que o “canetaço” de um diretor tem mais peso do que uma melhoria concreta na segurança ou eficiência de um processo. Aquelas em que a cultura da empresa — por mais que se diga “ágil” e “inovadora” — é, na prática, movida a medo, controle e aversão ao risco.

Empreender dentro desse cenário não é só difícil. É, muitas vezes, cruel. Porque exige não apenas competência, mas uma fé quase obstinada. Você precisa acreditar tanto, mas tanto no que está construindo, que mesmo diante de portas fechadas, sorrisos educados negando propostas e reuniões em que seu projeto é visto como ameaça, você segue. Só que nem sempre dá tempo. Nem sempre dá caixa. Nem sempre dá certo.

E é aí que está a parte mais dolorosa e mais bonita da inovação real: ela é feita por gente que sente. Que sofre. Que cansa. Que chora. Mas que insiste.

Por isso, esse texto não é só um elogio à coragem de quem empreende com propósito. É também um apelo. Um chamado a olhar com mais verdade para onde a inovação precisa, de fato, acontecer. Chega de maquiar a transformação com post-its e workshops. Chega de premiar o discurso e punir a prática. Chega de construir o futuro no administrativo e deixar o operacional no século passado.

A verdadeira inovação — aquela que muda realidades, salva vidas e liberta pessoas de trabalhos insalubres — começa na ponta. E se não começa lá, talvez seja hora de rever prioridades.

Talvez o legado da sua startup, meus caros amigos e amigas, não esteja nos contratos assinados ou no pitch que brilhou no evento corporativo. Talvez ele esteja na semente plantada em cada pessoa que te ouviu, que sonhou contigo, que viu que é possível tentar. E que, principalmente, aprendeu que mesmo quando não dá certo, ainda assim vale a pena.

Porque cada tentativa carrega um pedaço do futuro que queremos construir.

E que esse futuro, finalmente, comece de baixo pra cima. Onde mais se precisa. Onde mais se espera. Onde mais se merece.

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Por Lily Marchisio Especialista em gestão de projetos com foco em inovação, impacto social e empreendedorismo.
Especialista em gestão de projetos com foco em inovação, impacto social e empreendedorismo. Apaixonada por conectar pessoas, ideias e propósito, lidera iniciativas que promovem transformação real em comunidades e ecossistemas criativos. Atua como organizadora do Techstars Startup Weekend e coordenadora de projetos com forte atuação em diversidade, educação e tecnologia, impulsionando causas como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), inclusão e liderança feminina.
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