Sete a cada dez estudantes universitários ou com interesse em ingressar no ensino superior utilizam ferramentas de inteligência artificial (IA) em sua rotina de estudos, segundo pesquisa da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), realizada em parceria com a Educa Insights. De acordo com o levantamento, 29% dos entrevistados utilizam ferramentas de IA, como o ChatGPT e o Gemini, diariamente, enquanto 42% fazem uso semanalmente, totalizando 71% de adesão regular. Os participantes destacaram como principais benefícios a possibilidade de aprender a qualquer momento em qualquer lugar (53%); o acesso a informações e conteúdos mais atualizados e diversificados (50%); e, melhora na eficiência e rapidez na resolução de dúvidas e problemas (49%).
À medida que o uso de IA avança, começa a transformar o cenário educacional no Brasil e no mundo, um questionamento surge: como preparar as novas gerações para um futuro cada vez mais digital e conectado?
Para a pró-reitora de Ensino da Universidade Feevale, profa. Dra. Maria Cristina Bohnenberger, o debate quanto ao uso ou não de ferramentas de IA no processo de ensino aprendizagem já foi superado, tendo a discussão sobre como usá-las, assumido o papel central. “Como educadores, devemos preparar nossos estudantes para o mundo que eles encontrarão fora da universidade. Nesse mundo, o uso de IA para fins pessoais e profissionais é uma realidade”.
Maria Cristina entende que, como com qualquer ferramenta que tenha papel de destaque no exercício de uma atividade profissional, os espaços formativos devem incluir o uso de tal ferramenta no processo de formação. “No entanto, quando falamos de ambientes formais de aprendizagem, como a universidade, é importante avaliarmos as ferramentas de inteligência artificial de uma perspectiva acadêmica, buscando separar o que faz parte do ‘hype’ do que realmente pode ser feito, considerando limitações e vantagens de cada recurso”.
Além do acesso constante à informação, a IA oferece uma das maiores promessas: a personalização do processo de aprendizagem, permitindo que professores acompanhem o progresso individual de cada aluno.
Personalização da experiência
Criar uma experiência personalizada de aprendizagem é uma das possibilidades que se apresentam com o uso das ferramentas de inteligência artificial. Em áreas como matemática ou linguística, a IA pode adaptar exercícios práticos de acordo com o desempenho individual, focando em pontos específicos de dificuldade e maximizando o aprendizado. Além disso, os professores podem automatizar tarefas rotineira como, por exemplo, corrigir avaliações múltipla escolha, monitorar o progresso dos alunos ou gerar exercícios práticos, economizando tempo para se dedicar a uma orientação mais personalizada.
Segundo Maria Cristina, a personalização do processo de aprendizagem tem um papel central na redução das desigualdades educacionais. “As ferramentas de IA são grandes aliadas, uma vez que facilitam a construção de trilhas/roteiros de aprendizagem focados nas necessidades específicas de cada estudante. Além disso, permitem a implementação de processos de avaliação continuada, diminuindo as chances de um estudante em dificuldades ser notado apenas ao final do período letivo”.
Entretanto, Maria Cristina alerta que este processo passa pelo acesso a tecnologia. “Em tempos de pandemia, quando todas as aulas foram realizadas de forma remota, tivemos a oportunidade de presenciar que um telefone era compartilhado entre vários irmãos para que tivessem acesso aos conteúdos e atividades. As conexões de internet nem sempre são suficientemente ágeis para reproduzir todo o conteúdo necessário e, nem sempre, os aparelhos utilizados possuem tecnologia suficiente para acompanhar os programas que são utilizados pelo professor”.
Estudante de Ciência da Computação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Andriele Joras dos Santos, 20 anos, é uma entusiasta de tecnologia. No seu dia a dia, a jovem universitária tem interação constante com ferramentas de inteligência artificial, especialmente no contexto acadêmico das matérias exatas. “A rotina corrida de um estudante muitas vezes não permite resolver dúvidas rapidamente, como acontecia antigamente, quando era necessário agendar horários com monitores ou professores. Hoje, ferramentas como o ChatGPT tornam isso muito mais acessível”.
Para Andriele, o ChatGPT facilita não só o entendimento de conteúdos complexos, mas também proporciona uma experiência personalizada às suas necessidades específicas. “Se perco uma aula ou não entendo algum conceito, posso usar a IA para revisar, esclarecer termos e até simular explicações que facilitam o aprendizado. Além disso, ferramentas complementares como o DeepL Translate e o DeepL Write ajudam na tradução de textos para diferentes idiomas e no aprimoramento da escrita formal em inglês, algo essencial na produção acadêmica. Eu utilizo a IA como apoio para tirar dúvidas e melhorar minha produtividade, mas sem substituir meu próprio esforço”.
Uso de IA no Brasil
A regulamentação do uso de inteligência artificial (IA) no Brasil, aprovada no Senado em dezembro de 2024, representa um importante passo para um país que enfrenta inúmeros desafios, dentre eles a desigualdade de acesso à tecnologia. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 5,9 milhões de domicílios no Brasil não tiveram acesso à internet em 2023.
Para o professor de fisiologia e biologia celular na Universidade Feevale, Dr. Cláudio Felipe Kolling da Rocha, os desafios relacionados à inclusão tecnológica permanecem muito similares aos que tínhamos antes da popularização das IAs generativas (IAGens), sendo agora exacerbados pela velocidade com que essa tecnologia passa a integrar nossas vidas. “Embora os smartphones tenham popularizado o acesso à internet e a recursos tecnológicos digitais, as comunidades mais vulneráveis seguem sem acesso”.
É o que confirma o estudo Panorama da Qualidade da Internet nas Escolas Públicas Brasileiras, realizado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). A pesquisa apontou que, das 137.208 escolas públicas estaduais e municipais no Brasil, 89% declararam ter acesso à internet para uso geral. No entanto, apenas 11% dessas escolas possuem velocidade de conexão adequada, definida como igual ou superior a 1 Megabit por segundo (Mbps) por aluno no maior turno, conforme a meta estabelecida pela Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec). “Dessa forma, primeiro se faz necessária a readequação das redes nas escolas, seguindo-se a capacitação dos professores, para que então possamos ver uma adoção de tecnologias digitais na educação de forma ubíqua”, explica Kolling da Rocha.
IA em pauta
A Universidade Feevale, que possui câmpus em Novo Hamburgo e Campo Bom, conta múltiplas frentes de trabalho para debater sobre o uso de inteligência artificial na educação. Entre elas, destacam-se o Grupo de Trabalho em Inteligência Artificial (GTIA) e as formações docentes em IA e tecnologias educacionais. O GTIA é um grupo multidisciplinar formado por professores das áreas de tecnologia, gestão, direito, indústria criativa e pedagogia, juntamente com técnicos administrativos das áreas de infraestrutura de redes, ensino digital e núcleo pedagógico. “O grupo tem como objetivo debater os desafios relacionados ao uso de IA no contexto da educação, buscando soluções alicerçadas na ética para o uso de IA, lei geral de proteção de dados e princípios pedagógicos institucionais”, destaca Maria Cristina.
O GTIA atua em parceria com o Núcleo de Apoio ao Ensino e Aprendizagem (NAEP), vinculado à Pró-reitoria de Ensino e tem trabalhado de forma intensiva na qualificação do corpo docente, disponibilizando diversas atividades. Entre elas se destacam as oficinais de IA para educação com o tema IAs Generativas: a nova ferramenta do professor criativo. “Em 2025 o NAEP irá ofertar uma trilha formativa para que os professores possam experimentar diferentes recursos de IA e outras tecnologias para, a partir da experiência, desenvolver práticas docentes autorais a serem utilizadas com seus estudantes”, explica a pró-reitora de Ensino da Universidade Feevale.
Segundo Maria Cristina, os currículos da Universidade Feevale estão estruturados para que os alunos tenham sua formação por competências, e o desenvolvimento de soft skills são parte integral da experiência formativa do estudante. “No entanto, acompanhar o desenvolvimento efetivo das competências necessárias é um desafio, uma vez que as ferramentas de IA podem ser utilizadas para implementação eficaz de uma avaliação continuada e personalizada, permitindo um acompanhamento mais efetivo da jornada de aprendizagem”.
De acordo com Kolling da Rocha, as ferramentas mais utilizadas pelos alunos são as IAGens, em especial aquelas baseadas em grandes modelos de linguagem (Large Language Models – LLMs) para geração de texto. “Notamos que o estudante já chega no componente curricular com pelo menos um aplicativo de IAGen instalado no seu dispositivo móvel”.
Para Kolling da Rocha, a ampla disponibilidade de IAGens de texto gratuitas acaba atuando como um catalisador para um processo de reestruturação do papel do docente, que se iniciou a partir da disseminação do acesso à internet. “A rede mundial de computadores permitiu acesso imediato a grandes volumes de informação, deslocando o professor da posição de transmissor do conhecimento. Nesse novo paradigma informacional, o docente passa a ter um papel de grande importância na mediação do processo de ensino e aprendizagem, sendo responsável por criar um espaço que propicie experiências significativas, tendo o estudante como o protagonista na construção e significação do conhecimento”.
O Guia para a IA generativa na educação e na pesquisa, publicado pela Unesco, coloca o professor no centro no letramento tecnológico do estudante, com especial destaque na mediação do desenvolvimento do pensamento crítico. Além disso, o documento alerta que, embora as IAGens sejam muito fáceis de utilizar, a obtenção de resultados de alto padrão e qualidade requer um usuário qualificado e com senso crítico bem desenvolvido. “Dessa forma, professores e instituições de ensino devem ter como um de seus objetivos o desenvolvimento de uma postura crítica dos seus estudantes frente ao uso de ferramentas de IA”, explica Kolling da Rocha.
Futuro da IA na educação
De acordo com o Market.us, o mercado global de IA em educação deve chegar a US$ 92,09 bilhões até 2033, com uma taxa de crescimento anual de 38,1% durante o período de previsão de 2024 a 2033. Para Kolling da Rocha, é complexo fazer uma previsão de futuro quando vivemos um momento tão dinâmico, em termos de disponibilização de novas ferramentas. “Grandes modelos de linguagem treinados especificamente para o contexto educacional vêm sendo desenvolvidos, o que pode sanar algumas das deficiências que hoje temos nos modelos mais generalistas. Desenvolvimento de modelos específicos aliados à personalização da aprendizagem e à avaliação continuada são pontos que merecem a atenção dos professores”.
Já para Maria Cristina, é importante quebrar o paradigma de que a inteligência artificial veio tirar o lugar o professor. “A IA, na verdade, contribui para que o processo de ensino aprendizagem seja mais eficaz e mais fluído. O professor precisa buscar este conhecimento para que possa conhecer todas as possibilidades que esta ferramenta nos apresenta”.
Fique de olho
Professores ou entusiastas de tecnologia que desejam acompanhar o desenvolvimento da inteligência artificial aplicada à educação, fiquem atentos:
- Veja as IAGens como ferramentas, avaliando seu uso de forma crítica e alinhada aos objetivos de aprendizagem pretendidos.
- Qualifique seu corpo docente para que ele compreenda as vantagens e limitações das ferramentas.
- Tenha objetivos de aprendizagem claros e só então desenhe práticas pedagógicas com o uso da IA.
- Ao utilizar as ferramentas de IA, tenha como um dos objetivos o fortalecimento do posicionamento crítico do estudante.
- Integre as diferentes áreas para discutirem o tema, no contexto da IA, a interdisciplinaridade se intensifica.
Apesar das barreiras no acesso, o uso de IA na educação tem o potencial de democratizar o aprendizado, desde que sejam superados os desafios de infraestrutura e capacitação.